Não se esqueça da ordem…

Administração

A Ordem do Caos

 

FAMILIA

  • Amor

Amai-vos um ao outro, mas não façais do amor um grilhão:
Que haja antes um mar ondulante entre as praias de vossas almas.
Encheis a taça um do outro, mas não bebais na mesma taça.
Dai de vosso pão um ao outro, mas não comais do mesmo pedaço.
Cantai e dançai juntos, e sede alegres, mas deixai cada um de vos estar sozinho,
Assim como as cordas da lira são separadas e, no entanto, vibram na mesma harmonia.
Dai vossos corações, mas não confieis a guarda um do outro.
Pois somente a mão da vida pode conter nossos corações.
E vivei juntos, mas não vos aconchegueis em demasia;
Pois as colunas do templo erguem-se separadamente,
E o carvalho e o cipreste não crescem a sombra um do outro.

  • Filhos

Vossos filhos não são vossos filhos.
São os filhos e as filhas da ânsia da vida por si mesma.
Vêm através de vós, mas não de vós.
E embora vivam convosco, não vos pertencem.
Podeis outorgar-lhes vosso amor, mas não vossos pensamentos, porque eles têm seus próprios pensamentos.
Podeis abrigar seus corpos, mas não suas almas; Pois suas almas moram na mansão do amanhã, Que vós não podeis visitar nem mesmo em sonho.
Podeis esforçar-vos por ser como eles, mas não procureis fazê-los como vós, Porque a vida não anda para trás e não se demora com os dias passados.
Vós sois os arcos dos quais vossos filhos são arremessados como flechas vivas.
O arqueiro mira o alvo na senda do infinito e vos estica com toda a sua força para que suas flechas se projetem, rápidas e para longe.
Que vosso encurvamento na mão do arqueiro seja vossa alegria:
Pois assim como ele ama a flecha que voa, Ama também o arco que permanece estável.

TRABALHO

Vós trabalhais para poder manter a paz com a terra e a alma da terra.
Pois ser ocioso é tornar-se estranho às estações e ficar afastado da procissão
da vida que marcha majestosamente e com orgulhosa submissão em direcção ao
infinito.
Quando trabalhais sois uma flauta através da qual o sussurro das horas se
transforma em música.
Qual de vós quereria ser uma cana muda e silenciosa, quando tudo o resto
canta em uníssono?
Sempre vos disseram que o trabalho é uma maldição e o labor um infortúnio.
Mas eu digo-vos que quando trabalhais estais a preencher um dos sonhos
mais importantes da terra, que vos foi destinado quando esse sonho nasceu, e
quando vos ligais ao trabalho estais verdadeiramente a amar a vida, e amar a
vida através do trabalho é ter intimidade com o segredo mais secreto da vida.
Mas se na dor chamais ao nascimento uma provação e à manutenção da carne
uma maldição gravada na vossa fronte, então digo-vos que nada, excepto o suor
na vossa fronte, apagará aquilo que está escrito.
Também vos foi dito que a vida é escuridão, e no vosso cansaço fazeis-vos
eco de tudo o que os cansados vos disseram. 19
E eu digo que a vida é mesmo escuridão excepto quando existe necessidade,
E toda a necessidade é cega excepto quando existe sabedoria.
E toda a sabedoria é vã excepto quando existe trabalho,
E todo o trabalho é vazio excepto se houver amor;
E quando trabalhais com amor estais a ligar-vos a vós mesmos, e uns aos
outros, e a Deus.
E o que é trabalhar com amor?
É tecer o pano com fios arrancados do vosso coração, como se os vossos bem
amados fossem usar esse pano.
É construir uma casa com afecto, como se os vossos bem amados fossem
viver nessa casa.
É semear sementes com ternura e fazer a colheita com alegria, como se os
vossos bem amados fossem comer a fruta.
É dar a todas as coisas um sopro do vosso espírito, e saber que todos os
abençoados defuntos estão à vossa volta a observar-vos.
Muitas vezes vos ouvi dizer, como se estivesseis a falar durante o sono,
“Aquele que trabalha o mármore e encontra na pedra a forma da sua própria
alma é mais nobre do que aquele que trabalha a terra.
E aquele que agarra o arco-íris para o colocar numa tela à semelhança do
homem, é mais do que aquele que faz as sandálias para os nossos pés.”
Mas eu digo, não no sono, mas no despertar, que o vento não fala mais
documente com o carvalho gigante do que que com a mais ínfima erva;
E é grande aquele que, sozinho, transforma a voz do vento numa canção
tornada doce pelo seu amor.
O trabalho é o amor tornado visível.
E se não sabeis trabalhar com amor mas com desagrado, é melhor deixardes
o trabalho e sentar-vos à porta do templo a pedir esmola àqueles que trabalham
com alegria. 20
Pois se fizerdes o pão com indiferença, estareis a fazer um pão tão amargo
que só saciará metade da fome.
E se esmagardes as uvas de má vontade, essa má vontade contaminará o
vinho com veneno.
E se cantardes como anjos mas não apreciardes os cânticos, estareis a
ensurdecedor os ouvidos do homem às vozes do dia e às vozes da noite.

PESSOA

  • Liberdade

Um dia, muito tempo antes de muitos deuses terem nascido, despertei de um sono profundo e notei que todas as minhas máscaras tinham sido roubadas – as sete máscaras que eu havia confeccionado e usado em sete vidas – e corri sem máscara pelas ruas cheias de gente gritando: “Ladrões, ladrões, malditos ladrões!”
Homens e mulheres riram de mim e alguns correram para casa, com medo de mim.
E quando cheguei à praça do mercado, um garoto trepado no telhado de uma casa gritou: “É um louco!” Olhei para cima, para vê-lo. O sol beijou pela primeira vez minha face nua.
Pela primeira vez, o sol beijava minha face nua, e minha alma inflamou-se de amor pelo sol, e não desejei mais minhas máscaras. E, como num transe, gritei: “Benditos, benditos os ladrões que roubaram minhas máscaras!”
Assim me tornei louco.
E encontrei tanto liberdade como segurança em minha loucura: a liberdade da solidão e a segurança de não ser compreendido, pois aquele que nos compreende escraviza alguma coisa em nós.

Khalil Gibran Khalil

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